sexta-feira, 3 de abril de 2009

Inteligir

Tropicalismo, Antropofagia, Mito, Ideograma
Glauber Rocha
Extraído de Revolução do Cinema Novo. Rio de Janeiro: Alhambra, 1981


Consideramos como início de uma revolução cultural no Brasil o 1922. Naquele ano existiu forte movimento cultural de reação à cultura acadêmica e oficial. Deste período o expoente principal foi Oswald de Andrade. Seu trabalho cultural, sua obra, que é verdadeiramente genial, ele definiu como antropofágica, referindo-se à tradição dos índios canibais. Como esses comiam os homens brancos, assim ele dizia de haver comido toda a cultura brasileira e aquela colonial. Morreu com pouquíssimos textos publicados.

José Celso Martinez, que dirige o grupo Teatro Oficina, o mais importante grupo de vanguarda teatral, descobriu o texto do Rei da Vela, e montou o espetáculo. Foi uma verdadeira revolução: a antropofagia
(ou o Tropicalismo, também chamado assim) apresentada pela primeira vez ao público brasileiro provocou grande abertura cultural em todos setores.

O Tropicalismo, a antropofagia e seu desenvolvimento são a coisa mais importante hoje na cultura brasileira.

A história do Brasil é pequena, reduzida. Temos uma tradição nacional-fascista, que depois se transformou em nacional-democrática, mas quando o país descobriu o subdesenvolvimento, o nacionalismo utópico entrou em crise e caiu. Primeiro se descobriu, sem bem que em forma bastante esquemática, por que
no Brasil as Ciências Sociais são primitivas, o subdesenvolvimento econômico; depois veio a descoberta
de que o subdesenvolvimento era integral.

O cinema brasileiro partiu da constatação desta totalidade, de seu conhecimento e da consciência da necessidade de superá-la de maneira também total, em sentido estético, filosófico, econômico: superar
o subdesenvolvimento com os meios do subdesenvolvimento. O Tropicalismo, a descoberta antropofágica, foi uma revelação: provocou consciência, uma atitude diante da cultura colonial que não é uma rejeição
à cultura ocidental como era no início (e era loucura, porque não temos uma metodologia): aceitamos
a ricezione integral, a ingestão dos métodos fundamentais de uma cultura completa e complexa, mas também a transformação mediante os nostros succhi e através da utilização e elaboração da política correta. É a partir deste momento que nasce uma procura estética nova, e é um fato recente.

Agora, “Tropicalismo” é um nome que não significa nada, como “Cinema Novo”. Aquilo que é significante
é o apporto dos artistas nesta direção.

Tropicalismo é aceitação, ascensão do subdesenvolvimento; por isto existe um cinema antes e depois
do Tropicalismo. Agora nós não temos mais medo de afrontar a realidade brasileira, a nossa realidade,
em todos os sentidos e a todas as profundidades. Eis por que em Antônio das Mortes existe uma relação antropofágica entre os personagens: o professor come Antônio, Antônio come o cangaceiro, Laura como
o comissário, o professor come Cláudia, os assassinos comem o povo, o professor come o cangaceiro.

Esta relação antropofágica é de liberdade.

Já antes eu devia ter feito assim, já em Deus e o Diabo, mas o relacionamento entre os personagens era um relacionamento fechado, com censuras entre eles; eram mais burgueses porque eu era mais burguês. Ao invés em Antônio das Mortes houve uma abertura total, assim para os filmes dos outros autores: esta liberdade, nova para nós, criou a possibilidade de uma relação nova com o público.

Ultimamente não temos feito nem filmes americanos, nem filmes populistas: eu acho que um cinema assim é menos conceitual (e por isto mesmo, esquemático) e penetra mais profundo em um público colonizado, como o nosso. Com o sistema imperialista não se pode fazer concorrência, mas se se faz um filme que chega diretamente ao inconsciente coletivo, à disposição mais verdadeiramente profunda de um povo, então se pode até vencer.

Por outro lado, não foi um fato programado este, chegar a vencer, foi um fato de crescimento. E ainda faremos filmes feios. Mas aquilo que conta é o público, e o público é diferenciado.

É uma procura estética política que se move debaixo do signo da individualização do inconsciente coletivo, e para isto existe o aproveitamento de elementos típicos da cultura popular utilizados criticamente.

Nos dias passados falei com Godard sobre a colocação do cinema político. Godard sustenta que nós
no Brasil estamos na situação ideal para fazer um cinema revolucionário, e ao invés disso, fazemos ainda um cinema revisionista, isto é, dando importância ao drama, ao desenvolvimento do espetáculo, em suma.

Na sua concepção, existe hoje um cinema para quatro mil pessoas, de militante a militante. Eu entendo Godard. Um cineasta europeu, francês, é lógico que se ponha o problema de destruir o cinema. Mas nós não podemos destruir aquilo que não existe. E colocar nestes termos o problema sectário é, portanto, errado. Nós estamos em uma fase de liberação nacional que passa também pelo cinema, e o relacionamento com o público popular é fundamental. Nós não temos o que destruir, mas construir. Cinemas, Casas, Estradas, Escolas etc.

De resto, por fim Godard compreendeu também, e cheguei a filmar como ator, um plano para seu filme,
no qual tenho muita fé. Uma inversão estrutural do gênero western pode ser muito interessante e útil
para nós diretamente. É importante o western, não somente para mim. Nós somos um povo ligado historicamente à saga, à épica. Nós temos uma grande tradição filosófica; e é um mal. Mas seria
um mal maior uma filosofia de importação que não corresponde à história. Por isto a antropofagia
é mais importante.

Podemos criar as tradições de uma indústria na qual o produtor é o autor. Hoje, entre nós a figura
do produtor é de um técnico que estuda o mercado para encontrar formas e soluções objetivamente econômicas, até chegar a tipos de planificação.

Existe o cinema brasileiro que antes não existia, e no seu interior existem muitas diferenças.

Tínhamos de construir as estruturas e descobrir os cineastas. Isto foi feito. Agora existe uma mudança
de tática, com um trabalho enorme (mas planificado, organizado) para difundir as possibilidades do cinema.

Falar de mito e linguagem é fundamental. É o centro do nosso problema. Se tendemos para uma revolução global, total, a linguagem deve ser compreendida no sentido marxista, como expressão da consciência.

Para nós o problema é de mais imediata compreensão, porque o analfabetismo leva a um tipo de percepção complexa e nós queremos desenvolver nosso cinema em uma dialética histórica permanente com a situação em movimento.

Existiram várias fases. O momento da denúncia social, influenciado pelo neo-realismo e pelo cinema social americano. O momento da euforia revolucionária, que tinha já limitadas e esquemáticas características populares. O momento, finalmente, da reflexão, da meditação, da procura em profundidade.

Nestes três momentos se encontram grandes diferenças de linguagem, mesmo em um só autor. Eu por exemplo neste momento estou menos influenciado. Antônio das Mortes tem menos detritos. As influências são mais subjetivas, mais íntimas.

O cinema do futuro é ideogramático. É uma difícil pesquisa sobre os signos (símbolos). Para isto não basta uma ciência, mas é necessário um processo de conhecimento e de autoconhecimento que investe toda a existência e sua integração com a realidade.

O mito é o ideograma primário e nos serve, temos necessidade dele para conhecermo-nos e conhecer.
A mitologia, qualquer mitologia, é ideogramática e as formas fundamentais de expressão cultural e artística a elas se referem continuamente. Depois poderemos desenvolver outras coisas, mas, este é um passo fundamental. O surrealismo para os povos latino-americanos é o Tropicalismo.

Existe um surrealismo francês e um outro que não o é. Entre Breton e Salvador Dali tem um abismo.
E o surrealismo é coisa latina. Lautreaumont era uruguaio e o primeiro surrealista foi Cervantes. Neruda fala de surrealismo concreto. É o discurso das relações entre fome e misticismo. O nosso não é o surrealismo do sonho, mas a realidade. Buñuel é um surrealista e seus filmes mexicanos são os primeiros filmes do Tropicalismo e da antropofagia.

A função histórica do surrealismo no mundo hispano-americano oprimido foi aquela de ser instrumento para o pensamento em direção de uma liberação anárquica, a única possível. Hoje utilizada dialeticamente, em sentido profundamente político, em direção do esclarecimento e da agitação.

O Cinema Ideogramático quer dizer isto: forma desenvolvida e aprofundada da consciência, a própria consciência, em relação direta com a construção das condições revolucionárias. A inteligência da crítica francesa, se bem que esnobe e por vezes acadêmica, tem salvo o cinema de uma mediocridade maior.
O que esculhambou o cinema italiano foi a crítica pseudomarxista. Bazin é muito mais inteligente do que Aristarco, embora Rosselini, Visconti, Fellini, Antonioni sejam italianos. A excelente crítica de Bazin formou apenas Godard – embora Truffaut pudesse ser um grande cineasta se fizesse psicoanálise. Dois cineastas franceses que acompanho com atenção: Resnais e Rivette. Mas enquanto o cinema francês permanecer
no domínio da razão ele estará limitado. E o pior é que esta razão é antidialética. Godard é suíço – um subdesenvolvido esmagado pelo país vizinho. E é protestante – um moralista tímido que se auto-explode para não morrer de medo.

Texto gentilmente cedido pelo Tempo Glauber

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