domingo, 16 de setembro de 2007

Homemúsica, de Michel Melamed

"Podia ser em qualquer direção que o sentido seria um só. Os paus-de-arara, ônibus, carroças e caminhões, todos atravessam o país sem fazer cócegas, carinho ou cicatriz. O mapa parece intocado apesar do trajeto incessante. Como um carrinho de mão por sobre a terra este rastro deveria ficar marcado, este percurso merecia se fundir ao chão, afundá-lo. Essas estradas que ligam o norte e o sul do país, pelas histórias que carregam, deveriam estar abaixo do nível do mar.Mas não é assim que banda nenhuma toca. E é por isso que tem cidade grande e cidade pequena. Tem a cidade que manda e a que corre atrás da bolinha, traz os chinelos. É cidade catando migalha, cidade de quatro pra cidade, chupando o pau de cidade, tomando cascudo e vomitando sobre a outra que agradece dada a penúria. E maioria em volta em silêncio. De vez em quando o som das rodovias rompe esse silêncio, mas não muda nada não. Porque as cidades estão só brincando, são como crianças. Crianças perversas maltratando-se umas às outras. Daí tem a cidade maiorzona, desengonçada e má, que bate em todo país, mas que mais dia menos dia vai levar porrada de todas juntas ou de uma pequena, que então vai virar herói e namorar a cidade mais bonita daquela região..."

Informações da peça aqui e aqui.

sexta-feira, 14 de setembro de 2007

Signos e Transcriação

É universal que os signos são a substância que iniciam qualquer pessoa em algum conhecimento especializado, esotérico. Muitas vidas são criadas por meio deles, muitas são vividas por eles, símbolos estão desde os primórdios guiando a busca pelo que idealmente representa a plenitude da vida, sendo os mapas e princípios moldados desde a epigênese humana para a aventura da felicidade.

Algo interessante num símbolo é que ele costuma representar imageticamente a mesma idéia em toda parte do Globo, embora com juízos morais diferentes. Então, apesar das idéias serem as mesmas, as práticas são diferentes pelos humores e culturas de cada povo. Isso se manifesta na forma de expressar o que há na mente, a linguagem.

Estudos hoje em dia em filologia estão transformando a forma de tradução e transcrição de textos clássicos, por causa de um estudo mais aprofundado dos radicais nas nuances e práticas simbólicas de um povo, o que finalmente traz ao assunto desse post: a coleção Signos, da
Editora Perspectiva, dirigida por Haroldo de Campos. A grande sacada do Haroldo foi o neologismo Transcriação, que ele bem cunhou pra dizer que não transcrevia os textos das suas linguagens de origem, e sim transcriava pela procura na gênese da linguagem as idéias fundamentais que estariam simbolizadas no texto. Todos os livros dessa coleção são transcriados nessa ótica.

Destes eu já li Bere'shit, do próprio Haroldo de Campos, e agora leio As Bacantes, de Eurípedes, transcriado por Trajano Vieira. São experiências filologicamente fascinantes. Copio aqui um trecho da apresentação de As Bacantes:

"Excêntrico ao Cosmos, marginal ao Olimpo, Dioniso volta à cena para assumir o papel de símbolo. O exílio é um aspecto essencial de sua biografia, constitui o âmago da figura mitológica grega mais recorrente no imaginário social. Sua expressão é arquetípica, se considerarmos que as mais distintas manifestações de transe, de êxtase e de transgressão possuem algo do deus do vinho. O teatro é o espaço privilegiado por esse personagem que adota a máscara sorridente como signo da invenção. Invenção do gesto, mas também da identidade e, sobretudo, da linguagem. Avesso à redundância, Baco ri de quem resiste à renovação e o pune com a loucura. Penteu representa o chefe de Estado obtuso, cujo poder presumido sofre implosão.
...
O rompimento do esquema hierárquico está conectado com a invenção artística."


Isso me lembrou a absolvição criminosa de Renan Calheiros, e a mentira de alguns quando da apuração pública dos votos. A politicagem lá de Brasília realmente precisa de um jeito dionisíaco.

quinta-feira, 13 de setembro de 2007

O Bambu Chinês

Depois de plantada a semente deste incrível arbusto, não se vê nada por aproximadamente 5 anos, exceto um lento desabrochar de um diminuto broto a partir do bulbo. Durante 5 anos, todo o crescimento é subterrâneo, invisível a olho nu, mas... uma maciça e fibrosa estrutura de raiz que se estende vertical e horizontalmente pela terra está sendo construída. Então, no final do 5º ano, o bambu chinês cresce até atingir a altura de 25 metros. (Trecho de um texto recebido de Léo Pope)

Um pouco de Agricultura Celeste pra animar o dia.

quarta-feira, 12 de setembro de 2007

Desejo e Ethos

É singular ver cada tribo tem seu ethos e motivo ideológico, formando e sendo formado com as conquistas e atualizações do modo de ser do seu povo. Já que eu acho tão difícil englobar tanta diversidade e tanta vulgata pós-moderna, com tanta tecnologia e virtualidade assim também demagogia e corporativismo, resolvi começar explicando como será meu ethos e meu norte em tudo o que eu escrever: O ato de comer os Dasein.

O gosto disso é tão revelador que foi motivo de estudo de Jacques Lacan, e aliás foi ele mesmo quem escreveu essa frase em um dos seus seminários. Fiquei sabendo disso lendo um artigo da revista
The Symptom, em Lacan.com. Fiquei realmente impressionado e entusiasmado com a idéia, e de começo aqui vai um pedaço do texto, de autora Janne Kurki:

"The hour of truth implies that the letter—which cannot be divided—must enter into articulation (the order of the Law based on divisions, that is, on the structures of differences) without being melted into it. In the terms of Seminar VII, little by little we learn—that is, experience—that the goods we are after are not the Thing. This is the presupposition for the clinical effect of speaking cure: it creates the separation from the (m)Other. By saying aloud the things that have articulated our life (and death), we find out that they are not what we are after, that they are just changeable goods, represented by the Other in order to incorporate us into its system. We are part of it, but we are also something else and it is this “something else” that both bothers/haunts us (our “symptoms”/ sinthomes) and liberates (cures) us."

Essa descoberta me lembrou a Antropofagia dos visionários de 22, que se manifesta na "ciência do ajuste" nas palavras seguintes:

"The descriptive side of the arrival of the letter informs us of the experience-based success of psychoanalytic process and its relationship to the hour of truth: the letter will arrive at an articulation and because of this the truth will be said. However, this truth has its non-said side (alētheia implies its lētheia) which is its presupposition. In terms of eating one's Dasein, this means that—therapeutically—you must eat your Dasein at the hour of truth and—according to psychoanalytic experience—you will do it. Needless to say, the taste of Dasein is singular."

Não preciso dizer também que esse Weblog vai falar das complexidades e paradoxos, exatamente degustando os Dasein das mais diversas classes e posições a regurgitar novas formas, como bom taurino que sou.

E que o bom humor me guie na vereda da justiça.