sábado, 25 de abril de 2009

Filosofaê

Por Thomas Blommaerts

Esta exposição visa explorar, brevemente, as principais escolas de pensamento da filosofia da matemática, e alguns dos problemas que impulsionaram este tipo de especulação filosófica. É direcionado a pessoas sem familiaridade com o assunto, principalmente.

Ao aceitarmos a evidente conclusão de que um matemático pode descobrir e provar novas verdades matemáticas sem ser capaz de dizer quais são as características próprias de uma prova ou verdade matemática, percebemos a necessidade de algo que examine a matemática, e que porém esteja além da mesma. Ou seja, percebemos a necessidade de uma filosofia da matemática. Enumerar as questões que surgem acerca dos usos e operações mais básicos da matemática seria uma tarefa longa e exaustiva, porém não precisamos de longas abstrações para chegarmos a questões como: A definição de número; a necessidade da matemática para descrever a natureza; de que forma existem as entidades matemáticas (e se elas de fato existem); como poder ter certeza da verdade de uma proposição matemática; etc.

Os gregos antigos analisaram tais questões com seriedade, e grande parte das especulações e discussões filosóficas da época se referia freqüentemente à aritmética e à geometria. Deste período, as considerações que mais influenciaram o pensamento posterior sobre a natureza das entidades matemáticas foram provavelmente as de Platão e Aristóteles. Platão propôs que os objetos da matemática, assim como as formas ou idéias platônicas, deveriam possuir uma existência puramente abstrata e não-material. Aristóteles refutou este ponto-de-vista nos livros M e N da Metafísica, alegando que, por exemplo, o quadrado geométrico é um aspecto significativo de uma mesa quadrada, mas o quadrado geométrico só pode ser compreendido ao deixarmos de lado aspectos irrelevantes como a medida do lado de tal quadrado, ou de que material é feita a mesa, etc. [1]

Durante séculos, a filosofia da matemática foi uma disciplina latente, não sendo reconhecida como uma área específica de especulação filosófica, e escolas divergentes de pensamento acerca da natureza da matemática ainda não podiam ser claramente distintas. Porém, data do início do século XX o crescente discernimento de que a matemática (em particular a Análise) não atingia o nível de certeza e rigor com o qual por tanto tempo foi creditada, juntamente com o advento do Cálculo de Predicados e da computação digital, e a conclusão de que toda a matemática pode ser codificada em teorias formais. Estes fenômenos afetaram profundamente a maneira como vemos a matemática, e visões acerca da resolução dos novos problemas propostos geraram diversas escolas, dentre as quais as conhecidas por formalismo, logicismo e intuicionismo. Um destes problemas é o das fundações da matemática, ou seja, descobrir de que parte ou área da matemática as outras podem ser derivadas.

O formalismo, uma das expressões dessa agitação filosófica, propõe que a matemática não seja nada além de um jogo formal, da manipulação algorítmica de símbolos. Por exemplo, no “jogo” da geometria euclidiana, de acordo com certos axiomas e regras de inferência, podemos provar o teorema de Pitágoras. Da mesma forma, os símbolos do Cálculo de Predicados não denotam predicados ou qualquer outra coisa. Segundo este ponto-de-vista, portanto, os símbolos matemáticos não são nada além de marcas no papel, do que podemos inferir que a matemática não pode querer ser qualquer tipo de conhecimento acerca de objetos matemáticos.

Contudo, há ramificações no próprio formalismo. De acordo com algumas de suas versões, a matemática seria literalmente este conjunto de símbolos que escrevemos no papel, tornando equivalentes qualquer um dos jogos, e sugerindo que não podemos provar nada com estes jogos, mas apenas joga-los. Esta visão nos deixa muitas perguntas acerca da natureza dos símbolos, da utilidade da matemática e transforma a matemática em uma atividade largamente banal, sendo assim pouco aceita.

Outra versão do formalismo é o dedutivismo, no qual um teorema ou verdade matemática não é uma verdade absoluta, mas relativa. Se considerarmos verdadeiros tais e tais axiomas de modo que certas regras de inferência se tornem verdadeiras, então teremos que aceitar o teorema. Assim, a visão formalista radical de que a matemática é apenas a manipulação de certos símbolos não é, neste contexto, necessária. A questão da existência de uma interpretação sob a qual as regras do jogo funcionem, portanto, não impede que o matemático continue seu trabalho e, até, deixe que a sugestão de sistemas de axiomas a serem estudados atenda as demandas da ciência ou de outras áreas da matemática.

Apesar da possibilidade de “flexibilizar” as visões formalistas, muitos não se contentaram com o mesmo, pois este parece ignorar os processos pelos quais os seres humanos compreendem a matemática, e pelos quais a matemática é formidavelmente aplicada – algo que não somente é um fato, mas foi e continua sendo uma das maiores motivações para a criação de novas ferramentas matemáticas, sendo o modelamento matemático de situações físicas e biológicas um dos melhores exemplos disso. Assim, outras doutrinas surgiram em reação a este ponto-de-vista, dentre elas o construtivismo, segundo o qual o conhecimento matemático é obtido através de uma série de construções puramente mentais. Assim, os objetos matemáticos existiriam apenas na mente do matemático, conferindo certeza ao conhecimento matemático. Logo, a relação da matemática com o mundo exterior é fonte de dúvidas, podendo até, em uma forma extrema de construtivismo, ser impossível (ou seja, a comunicação da matemática de uma mente para a outra não seria viável).

Uma das conquistas da escola construtivista é, não obstante, ter tornado consistente a cognição de objetos, operações e problemas matemáticos, por exemplo. Porém, a rejeição do mundo exterior (e o corolário perturbador segundo o qual leis lógicas aceitas universalmente como o princípio da não-contradição de Aristóteles teriam que ser abandonadas) torna-se uma barreira considerável para a adoção completa do construtivismo. [2] Todavia, à luz desta noção de que apenas entidades matemáticas que podem ser “explicitamente construídas” podem existir e serem admitidas no discurso matemático, o intuicionismo tomou forma. Nele, por mérito de L.E.J. Brouwer, uma lógica não-aristotélica é usada além do aparato conceitual construtivista acima exposto: a lógica intuicionista.

Esta lógica intuicionista nega, primeiramente, o princípio do “terceiro excluído”, ou tertium non datur. Este é o princípio segundo o qual para uma proposição “P”, é verdade que ou “P” é verdadeira, ou “P” é falsa. Um exemplo: Pedro é judeu ou Pedro não é judeu. Este princípio pode aparentar ser nada mais que senso comum, mas uma implicação importante da rejeição deste é a conseqüente rejeição de provas por contradição, ou reductio ad absurdum. Neste tipo de argumento, assumimos que algo possua tal atributo, chegamos a um resultado absurdo, e então concluímos que o que assumimos tem que estar errado, já que nos proporcionou um resultado absurdo. Este tipo de prova usa o princípio do terceiro excluído no que necessita da imediata conclusão de que se algo não pode ser falso, então tem que ser verdadeiro. Algumas das provas mais importantes de teoremas matemáticos foram atingidas por este método, entre elas a indiscutivelmente bela prova de Euclides acerca da infinitude dos números primos. Rejeitando este princípio, entre outros, resta uma tarefa imensamente árdua: Provar todos os teoremas que usam a lógica clássica, desta vez os fundando nesta nova lógica. Muitos matemáticos se dedicaram a tal tarefa, notadamente entre eles Errett Bishop, que provou versões dos mais importantes teoremas da Análise Real, no contexto desta lógica. Além da dificuldade de ter que reconstruir teorias matemáticas solidamente fundadas como a Teoria dos Conjuntos e o Cálculo, o intuicionismo foi muito criticado pois o termo emprestado do construtivismo, ou seja “construções explícitas”, não é definido claramente.

Retornando alguns anos na linha cronológica, já que este esboço tem até aqui seguido a origem e problemas de cada escola, em detrimento da sua data de origem (embora todas elas até aqui tenham sido desenvolvidas no século XX), nos deparamos com um nome que inevitavelmente necessita ser mencionado em qualquer texto que queira ao menos delinear a história da matemática: Gottlob Frege.

Frege foi o fundador do logicismo, uma teoria segundo a qual a matemática é uma extensão, ou seja, pode ser derivada da lógica e a ela pode ser reduzida. Em seu Die Grundgesetze der Arithmetik (As Leis Básicas da Aritmética), ele reconstruiu a aritmética usando um sistema de lógica, com a peculiaridade que este aceitava uma Lei Básica V, enunciando que para conceitos “F” e “G”, a extensão de “F” iguala a extensão de “G” se e somente se para todo objeto “a”, “a” pertence a “F” se e somente se “a” pertence a “G”. Contudo, Bertrand Russell, ao revisar o trabalho de Frege, descobriu que esta lei é inconsistente e gera um paradoxo, hoje conhecido como Paradoxo de Russell [3]. Esta descoberta foi provavelmente a causa do abandono do programa logicista por Frege. No entanto, foi pelo próprio Russell, conjuntamente com Alfred North Whitehead, que a doutrina logicista obteve grande êxito e número de adeptos.

Entre 1910 e 1913, Russell e Whitehead publicaram uma obra em três volumes intitulada Principia Mathematica, com o objetivo de derivar todas as verdades matemáticas de um conjunto bem-definido de axiomas e regras de inferência expressas em lógica simbólica. A maneira como Russell e Whitehead conseguiram se esquivar do paradoxo encontrado na obra de Frege foi elaborar um sistema de tipos: Um conjunto possui um tipo superior ao dos seus elementos e portanto não podemos falar sobre o “conjunto de todos os conjuntos” e construções similares, pois estas resultarão em paradoxo. Os Principia, não menos que uma obra seminal, cobriram apenas a Teoria dos Conjuntos e os números cardinais, ordinais e reais. Mesmo assim, já na publicação do terceiro volume, o princípio pelo qual toda a matemática poderia ser derivada da lógica já estava claro. A questão agora era se alguma contradição seria encontrada nos axiomas apresentados na obra, e se existiria alguma proposição matemática que não poderia nem ser provada nem o contrário, neste sistema. Estas questões foram resolvidas com o aparecimento em 1931 de uma das maiores descobertas intelectuais da humanidade, devida ao austríaco Kurt Gödel: Os teoremas da Incompletude.

A maneira como esta descoberta pôs um fim abrupto ao logicismo foi demonstrar, para além de qualquer questionamento, no que é chamado o segundo teorema da Incompletude de Gödel, que a aritmética não pode ser usada para provar sua própria consistência, do que se segue que ela não pode ser usada para provar nada mais forte do que ela mesma. A conseqüência da incompletude aqui, para um ponto-de-vista no qual a lógica formal é usada para definir os princípios da matemática, é que nós nunca poderemos encontrar um sistema axiomático que dê conta de provar todas as verdades matemáticas. Isto é uma paráfrase que sumariza o primeiro teorema da Incompletude. A partir desta implicação e daquela que já vimos, proveniente do segundo teorema da Incompletude, creio que fica ao menos ligeiramente ilustrada a profundidade da descoberta de Gödel, e o fenômeno que a mesma causou. [4] Além disso, em 1936 Alan Turing e Alonzo Church, independentemente demonstraram o que ficou conhecido como Entscheidungsproblem (problema da decidibilidade), segundo o qual ficou provado que é impossível decidir se uma conjectura é provável ou não, algo que apenas realçou ainda mais o efeito devastador da Incompletude. Conjecturas em aberto, como a famosa conjectura de Goldbach, podem para sempre ficar em aberto, e não temos como saber se isso é verdade ou não.

Em retrospecto, devido ao fracasso do sistema de Russell e Whitehead, alguns logicistas modernos se tornaram a um programa mais próximo do programa original de Frege. Eles obviamente abandonaram a Lei Básica V que vimos resultar em antinomia, mas a substituíram por princípios de abstração igualmente eficientes, nomeadamente o Princípio de Hume, segundo o qual o número de objetos que caem sob um conceito “F” é igual ao número de objetos que caem sob um conceito “G” se e somente se a extensão de “F” e a extensão de “G” puderem ser colocadas em uma correspondência “um-a-um”, ou seja, uma bijeção. [5]

Finalmente, traçar o desenvolvimento da filosofia da matemática no século XX requere a menção do renascimento e aprimoramento do platonismo na matemática, o que é também referido como realismo. Segundo esta doutrina, as entidades matemáticas existem independentemente da mente humana, assim sugerindo que nós humanos não inventamos matemática, mas a descobrimos, e o mesmo aconteceria com quaisquer seres do universo que possuíssem razão. Podemos já aqui notar o motivo da aplicação do termo platonismo a tal teoria, sendo esta um paralelo visível à teoria de Platão de um mundo ideal externo ao nosso, uma realidade imutável da qual nosso mundo é apenas uma aproximação imperfeita. Esta visão só é superada em idealismo por Pitágoras e seus seguidores, que acreditavam que o mundo era, de forma mística mas literal, composto por números.

Exemplos de matemáticos que eram adeptos deste realismo platônico em relação à matemática são Paul Erdős, um extremamente prolífico representante da Teoria dos Números, que face a uma prova matemática elegante exclamava “esta é do Livro!”, referindo-se alegoricamente a um livro onde as provas perfeitas de cada teorema estariam registradas, e o já mencionado Kurt Gödel, que acreditava em uma realidade matemática objetiva que poderia ser percebida de maneira análoga à percepção sensorial. Alguns princípios poderiam ser diretamente percebidos como verdadeiros, mas algumas conjecturas poderiam ser provadas indecidíveis. Porém, o que nos interessa, como sempre, é encontrar os problemas de cada doutrina, e no realismo o principal problema é rapidamente levantado em qualquer discussão na qual este seja apresentado: Como e onde existem as entidades matemáticas? Além disso, como nós conseguimos acessar temporariamente este mundo ideal e descobrir em parte ou totalidade verdades sobre tais entidades?

Considerarei, a fim de elucidar o melhor possível estas questões, argumentos da parte de dois dos mais significativos filósofos da matemática do último século, Willard van Orman Quine e Hilary Putnam. Um desses argumentos formulados por Quine e Putnam é o argumento da indispensabilidade, que diz que a matemática é indispensável para todas as ciências empíricas, e se queremos acreditar na realidade dos fenômenos descritos pelas ciências, temos que acreditar na realidade daquelas entidades requeridas para tal descrição. Portanto, ele argumenta que a existência das entidades matemáticas é a melhor razão para a experiência, o que faz a matemática perder uma parcela de seu status epistêmico. Mesmo assim, o argumento da indispensabilidade matemática é tido como o único bom argumento a favor do realismo platônico, e mesmo alguns autores que discordam entre si sobre a ontologia dos objetos matemáticos o defendem. [6] É também digno de nota o fato de que Putnam rejeitou o termo “platonismo” por este implicar uma ontologia demasiado específica e que não é necessária para a prática da matemática em qualquer sentido real. Ao contrário, ele defendia o uso do termo “realismo puro” para rejeitar quaisquer noções místicas de verdade.

A título de consideração final, creio ser importante esclarecer que o fato de termos considerado as escolas de pensamento acerca da filosofia da matemática separadamente não implica, contudo, que as premissas de uma excluam definitivamente as das outras. A maioria das formas de logicismo, por exemplo, envolve formas de realismo matemático. O intuicionismo, porém, é um bom exemplo de uma filosofia anti-realista da matemática. Além disso, é necessário deixar claro que neste breve esboço não me ative a todas as escolas presentes no século XX, e negligenciei notadamente as teorias que se concentram quase exclusivamente no conteúdo e processo da cognição matemática, as teorias de construtivismo e realismo social, a teoria do quasi-empiricismo, etc.

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