domingo, 8 de março de 2009

Poquin diciência

Nunca é demais lembrar um dos temas mais importantes da biologia evolutiva: é muito raro, para não dizer impossível, que características importantes surjam do nada. Simplesmente não é assim que a banda toca quando falamos de seres vivos. Sem poder se dar ao luxo de voltar à prancheta de desenho diante de um novo desafio, a evolução trabalha sempre com o que já existe, ajustando um detalhe aqui, aparando uma aresta ali, reciclando incontáveis vezes sua matéria-prima. Foi dessa maneira que os mesmos quatro membros básicos dos vertebrados terrestres viraram asas e nadadeiras, para citar um caso óbvio. Mas o conceito se aplica igualmente bem a algumas de nossas características mentais mais caras e complexas. Um exemplo? A repulsa que sentimos diante dos mais variados tipos de maldades e sacanagens. Segundo esse ponto de vista, o nojo moral nasceu do nojo físico.



A hipótese acaba de ser explorada de forma elegante por Hannah Chapman, da Universidade de Toronto, e outros três colegas canadenses. As pistas que eles seguiram estão, na verdade, acumulando-se cada vez em outros estudos sobre as emoções morais humanas. Parece que as pessoas tomam decisões sobre o certo e o errado de forma muito pouco racional, baseando-se muito mais em instintos morais que estão muito mais ligados à emoção do que ao raciocínio. De quebra, análises do funcionamento do cérebro em “tempo real” (com máquinas de ressonância magnética) indicam que as nossas metáforas linguísticas não são tão metafóricas assim. Quando falamos em “calor humano” ou sentimos o “frio da solidão”, as áreas cerebrais ligadas à sensação física “acendem” por causa da emoção associada com ela. Chega a ser sinistro.

Voltando à repulsa moral: haveria algo mais concreto por trás dos chavões quando dizemos que Hitler ou Stalin eram “nojentos”? Numa pesquisa recentemente publicada na revista especializada americana “Science”, Hannah Chapman e seus colegas investigaram, primeiro, que músculos do rosto são ativados por coisas fisicamente nojentas ou repulsivas. Voluntários recrutados pelo trio tiveram de beber líquidos de sabor neutro, doce ou amargo, e de ver fotografias com cenas de ferimentos, fezes e insetos. (Que delícia, pensará você.) O resultado foi o esperado: as coisas universalmente reconhecidas como nojentas levaram à ativação da região muscular batizada de levator labii. Trocando em miúdos: o lábio superior dos sujeitos ficou arqueado e seu nariz, torcido, fez uma fusquinha, como você pode ver na terceira foto acima.

Agora é que vem o pulo-do-gato. A próxima tarefa dos voluntários foi participar do Jogo do Ultimato, uma brincadeira muito usada para estudar os instintos sociais humanos. Nele, um dos jogadores recebe uma quantia (R$ 10, digamos), que ele tem a liberdade de repartir com um parceiro da maneira que quiser. Só há um porém: se o parceiro achar a proposta do primeiro jogador abusiva e recusá-la, ninguém fica com nada. Estudos anteriores mostraram que, diante de uma oferta muito baixa (R$ 1 ou coisa do tipo), as pessoas preferem não ganhar nada a ser exploradas.

Pois bem: quando um jogador sacaneava o outro no Jogo do Ultimato, os pesquisadores perceberam algo no mínimo curioso. Os participantes passados para trás relatavam, num questionário, o nojo como a emoção mais intensa do momento, seguida meio de longe pela raiva. Ao verem imagens de expressões faciais, também escolhiam a de nojo como a que melhor representava seu estado de espírito. E, de forma nada surpreendente, o levator labii dos que se recusavam a aceitar a oferta injusta foi muito ativado na pesquisa.

É claro que as conclusões são preliminares, mas elas certamente alimentam inúmeras especulações sobre a ligação entre razão, emoção, instinto e linguagem. É impressionante imaginar que o nosso senso de justiça, aparentemente tão abstrato e “elevado”, usa como elevador comportamental uma necessidade básica de todo animal, o nojo que sentimos diante de comida estragada ou de um cadáver putrefato. Longe de ser apenas um fardo do qual precisamos nos libertar, nossa história evolutiva às vezes ajuda nossa espécie a se conectar com o que há de mais nobre em sua trajetória e em seu potencial.

de Visões da Vida

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Um exemplo do que é fazer ciência básica, de acordo com a estrutura de Kuhn. É medição quantitativa de aspectos qualitativos saboreados, usando o paradigma de uma disciplina qualquer.

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