quinta-feira, 26 de março de 2009

O Gasoso, O Borroso e A Estetização Difusa da Contemporaneidade

por Guy Amado - Julho de 2005

Nos tempos turbulentos e "acelerados" em que vivemos, a existência se conforma em meio a uma profusão de códigos e padrões comportamentais cambiantes, hibridismos de toda espécie e ao surgimento de novas modalidades de pensamento, mais especializadas. A classificação de pós-moderno como emblema de uma época ou estado da cultura foi exaustivamente aplicada de diversos modos desde meados dos anos 1970, na tentativa de se buscar uma teoria que traduzisse o zeitgeist das últimas décadas. Fosse como definição de um estilo ou estado de espírito advindo de certa insatisfação com o modernismo na arte e na literatura, como tendência filosófica ou, ainda, de modo mais raso e abrangente, como a então mais recente época cultural do Ocidente, a teoria da pós-modernidade sempre esbarrava em inúmeras questões e problemas conceituais que se insinuavam tanto na descrição quanto na avaliação da arte e do pensamento que se propunha investigar, sendo hoje considerada superada ou insuficiente para abarcar a complexidade do estado das coisas que conforma a atualidade. O ceticismo que permeava boa parte do discurso pós-moderno [em larga medida vinculado a pensadores da escola estruturalista francesa], investindo na anulação ou suspensão de noções tais como verdade objetiva ou universalidade de significado, foi intensamente combatido por seus detratores, que de modo geral não viam nessa linha de pesquisa uma plataforma suficientemente consistente para abordar com propriedade a complexidade dos eventos que se propunham analisar.

Nesse contexto, fez-se pertinente a busca por outros canais de identificação com a realidade e as transformações de nossa era, mais atualizados e adequados à confecção de um diagnóstico da mesma; e um deles pode estar no que vem sendo descrito como uma "estetização difusa do mundo contemporâneo", como afirma o crítico de arte e teórico da estética Jose Luis Brea[1] . A importância da estética como interpretante do mundo contemporâneo é trabalhada e afirmada continuamente, em registros diversos, em teorias oriundas de diversas áreas do conhecimento, como a sociologia, a filosofia, a antropologia, a semiótica e ciências exatas como a matemática, a física e a cibernética. Investe-se mais e mais no excesso de especialização e na idéia de transdisciplinaridade, que se impõe como método procedimental mais afeito à investigação de fenômenos não mais passíveis de serem analisados em termos absolutos.

Seja qual for o juízo que se possa fazer sobre a ocorrência desse fenômeno da estetização, parece inevitável remeter sua origem à expansão das indústrias audiovisuais e de massmedia e à iconização exaustiva do mundo contemporâneo, associada à progressão das indústrias da imagem, do desenho e da publicidade. Esse fenômeno implicaria em conseqüências fundamentais sobre os modos de nossa experiência – e ainda sobre a própria constituição efetiva dos mundos da vida, sobre a constituição do real, mesmo que nem sempre nos apercebamos do fato.

Este mundo "estetizado" e debilmente definido, carente de alguma consistência em que assentar algum princípio firme de valoração das práticas - tanto estéticas como éticas – seria um mundo em que o homem já haveria perdido qualquer possibilidade de estabelecer seu próprio projeto frente à ascensão da tecnociência, no enfoque reticente de Brea. É também o mundo hiper-real diagnosticado por Jean Baudrillard, em que a cultura do simulacro e a polissemia de signos prevalecem sobre o cânone da representação, colaborando na configuração de uma experiência difusa em nossos modos de apreensão do mundo.

Nas sociedades atuais, a forma contemporânea de disseminação desta estetização supõe uma dinâmica claudicante, nos termos estabelecidos pelas ascendentes e poderosas indústrias do espetáculo e entretenimento, sob cujas regras e ditos se estrutura contemporaneamente a própria lógica da instituição "Arte". Uma lógica cujo enorme potencial de absorção parece desmobilizar qualquer gesto de resistência, qualquer tensão crítica, convertendo toda a retórica vanguardista da autonegação em uma falsa aparência requerida pelo jogo de interesses criados, aquela do choque e do "novo" que os próprios interesses de renovação periódica dos padrões dominantes do mercado institucionalizado de arte impõem. Mesmo as recorrentes "mortes da arte" contemporânea, para além de servirem para retro-alimentar a especulação no bojo desse mesmo mercado, se expressam nos termos de uma estetização generalizada dos mundos da vida e as formas da experiência.

À esta idéia de uma estetização difusa das sociedades atuais, desse ruído que permeia os modos de vida e as formas da experiência - a própria realidade, justaposta desta maneira ao mundo da cultura e da arte -, poder-se-ia contrapor dois outros conceitos específicos que de alguma maneira potencializam ou alargam o alcance daquela.

A primeira noção a ser aqui abordada, a propósito do referenciado processo de estetização difusa por que o mundo vem passando, e que certamente se alinha, em sua plataforma eminentemente relativista, provocativa e instigante, a algumas outras vertentes do pensamento contemporâneo, seria a teoria da "borrosidad", ou fuzzy logic - doravante levianamente aliterada para borrosidade -, tal qual postulada por Bart Kosko[2] . O pensamento borroso sustenta de modo geral que a forma de raciocinar em termos absolutos de verdadeiro ou falso já não nos serve, e que é preciso aplicar uma lógica "nebulosa", que capte os matizes acinzentados do mundo real, onde nada é absolutamente preto e branco. As verdades e certezas tomadas como relativas, e as "áreas cinzentas" traduzidas num modo de raciocínio por aproximação, ao invés da exatidão, permitiriam reflexões e descrições mais adequadas para determinados aspectos da realidade que nos cerca que o pensamento da lógica binária aristotélica.

A investigação dos fenômenos que abarcam a experiência da contemporaneidade pelas vias difusas da borrosidade consistiria, assim, em procurar compreender o mundo em suas nuances "cinzentas", em detectar a policromia de cinzas. Ao se aplicar um raciocínio amparado no binômio "preto-no-branco" para tentar compreender ou explicar um mundo cinzento, deve-se tratar algo que é tomado como verdadeiro em certa medida como se fosse ou inteiramente verdadeiro ("o copo está cheio") ou inteiramente falso ("o copo está vazio"). Cada passo em um processo racional requer uma simplificação desse tipo e, portanto, tende a adicionar outra camada de arbitrariedade e erro ao mesmo processo.

Abramos um parêntese para uma breve digressão acerca de alguns aspectos determinantes na da arte na atualidade. Se em outras épocas a arte já foi entendida como uma imagem da realidade, para a qual a história da arte oferecia uma moldura, na contemporaneidade porém ela já "escapou" desta moldura. As definições tradicionais já não dão conta de abarcá-la, com uma profusão de novas práticas proliferando, e não apenas valendo-se de meios e linguagens plásticas, mas originando-se de mídias eletrônicos ou de propostas envolvendo a biotecnologia, etc. Deslocando um pouco o foco, as práticas do âmbito das artes visuais nos dias de hoje ocupam também um espaço social paradoxal, a um só tempo "dentro" e "fora" da sociedade. Por um lado, elas estão plenamente integradas ao tecido cultural, social e econômico ocidental, onde existe uma poderosa rede pública e privada (galerias, museus, fundações, Bienais) que apóia e promove a arte contemporânea por meio de diversos mecanismos (aquisições, subsídios, isenção fiscal) e torna possível que o investimento em arte seja uma prática relativamente estável no mercado financeiro internacional. Mas apesar disso, a arte ainda parece ocupar uma posição relativamente marginal na sociedade atual, como se fosse apenas um elemento decorativo ou uma espécie ameaçada de extinção, mantida num santuário para garantir sua sobrevivência [de fato, em termos culturais, outras manifestações expressivas, como a música, cinema ou televisão têm relevância social muito mais intensa]. A produção artística, que em outras épocas causou grande impacto em sistemas sociais, tende a ser agora encarada como um tipo de excentricidade inofensiva, sendo avaliada com certa condescendência, em muito por conta de fatores como a banalidade que reveste sua prática hoje e a implacável lógica mercantil que a um só tempo a difunde e restringe ou amortece seu potencial transformador. A borrosidade apresentaria um instrumental adequado a uma análise do estatuto ambíguo que conforma o sistema da criação e circulação da arte hoje, fornecendo talvez uma via de acesso que permita introduzir "nuances de cinza" sobre esse cenário. Verificar, por exemplo, em que medida é ainda possível ou relevante pensar no significado visual e verbal da arte, frente às demandas e imposições do mercado e da presente cultura do espetáculo - em que a importância da obra de arte [e não raro do artista] é mensurada em termos da publicidade e da notoriedade por ela atingida; e, em caso positivo, descobrir quais seriam as mecânicas de suas instâncias de comunicação.
* * *
Nesse panorama a um só tempo complexo e fugidio dos dias que vivemos, em pleno curso de um processo de globalização que se desenrola de modo tão inexorável quanto incerto, desenhou-se uma nova configuração cultural e sociopolítica do mundo que ressalta contrastes e acena com o abalo de crenças e o fim de utopias. A dinâmica que modularia a forma contemporânea do homem embater-se com o real, sua mediação com o mesmo, se dá sob a égide de uma potentíssima indústria da comunicação e impressionantes avanços tecnológicos que mais e mais influem diretamente em nossos modos de vida. Fez-se mister, assim, desenvolver novas formas de se analisar e assimilar o impacto dessas transformações junto à esfera da existência cotidiana. De modo emblemático dessa nova ordem mundial e da perda de referenciais inferida já em boa parte do pensamento pós-moderno, muitas dessas leituras - executadas por teóricos de áreas heterogêneas como a física, a economia política ou a filosofia - adotam um tom perpassado por certo "desencanto" - ou mero cinismo, como preferem os menos afeitos ao grau de abstração incutido nessas propostas. Desencanto a não ser necessariamente interpretado como um enfoque pessimista ou a ser associado de pronto à idéia de negatividade, constituindo-se antes como uma tática de abordagem que visa a formulação de diagnósticos mais compatíveis com o estado das coisas de seu tempo e ao surgimento de novas poéticas ligadas à incerteza e a definições incertas de formas e valores. Algumas dessas análises, contudo, até pela natureza relativamente "volátil" ou instável do objeto a que se dispõem analisar, eventualmente se baseiam em estruturas conceituais destoantes daquelas apregoada pelas convenções de sistemas de pensamento mais, digamos, tradicionais.

Ilya Prigogine, por exemplo, essencialmente um homem da ciência, interessado em analisar o papel e aproveitamento da mesma na sociedade e no futuro da humanidade, provocou estardalhaço e renovou a inter-relação entre ciência, filosofia e cultura quando chamou a atenção para as estruturas dissipativas da realidade [fenômenos de criação de ordem distantes do referencial de equilíbrio estabelecido pelas leis da termodinâmica, ou sistemas em não-equilíbrio] e o "fim das certezas", valendo-se também da Teoria do caos e do conceito de complexidade [que não caberia tratar aqui de forma mais demorada mas que grosso modo denotaria, na avaliação de teóricos especializados, que as coisas não apenas se "complicam", mas de alguma forma também se multiplicam, indo muito além do que seria um todo apenas justaposto, somado]. É evidenciada, na obra de Prigogine como na de pensadores atuantes em outros campos do saber, a importância da atuação da ciência contemporânea, imiscuída à filosofia ou a outras áreas, na relativização do conhecimento absoluto, estanque, e desestabilização do poder das "verdades" científicas – uma guinada na forma de se pensar o mundo que apresenta traços comuns, ainda que em graus diversos, com outras teorias abordadas neste texto.

É nesse contexto que se apresenta a segunda noção, ou conceito, igualmente emblemática da estética difusa da presente era supermoderna ou pós-industrial, proposta pelo filósofo Yves Michaud nos termos de uma arte em estado gasoso[3] – que poderia ser descrita em termos gerais como uma arte em que importa menos o objeto em si do que a experiência fugidia, flutuante, do receptor, ou espectador.

A produção artística atual, com a profusão de estilos, gêneros e subgêneros que lhe é peculiar, se apresentaria assim como uma “arte em estado gasoso”, na medida em que ela tende mais e mais a se expandir para todos os lados, assumindo uma fisionomia e uma dinâmica de apresentação volátil – num movimento que radicaliza a tendência que já se tentou definir como desmaterialização na arte -, além de romper com antigos dogmas como a premissa da "obra exclusiva". A arte contemporânea pode ser entendida, mesmo em seu presente estatuto incerto, como uma dentre muitas "realidades alternativas", com seu próprio conjunto de presunções tácitas, procedimentos e mecanismos abertamente proclamados para sua auto-afirmação e autenticação, tendo alcançado certo grau de independência da realidade "não-artística". Uma de suas características mais acentuadas reside numa perda sensível de seus elos tradicionais com o compromisso da "representação": ela já não admite que a "verdade" a ser captada pela obra de arte se ache em ocultação "exterior" – na realidade não–artística – esperando ser encontrada e receber uma tradução artística. Em vez de refletir a vida, ela passa a se somar a seus conteúdos, por meio de imagens e signos que mediam esse processo e que não mais representam, mas simulam – e a simulação, como postulado por Baudrillard, "...se refere a um mundo sem referência, de que toda referência desapareceu"[4]. Essa perda ou mudança de referenciais no âmago da visualidade contemporânea certamente contribui de modo incisivo para acentuar uma percepção "gasosa" da realidade.

A arte em estado gasoso apresentaria duas facetas ou tipos de "função": de um lado, uma hedonista, voltada para o prazer – mas uma nova forma de prazer, marcada pelo signo do cool, insinuante; e de outro, uma função expressiva cujo objetivo é demarcar identidades – inclusive suas próprias. Pensa-se aqui, segundo Michaud, em uma arte que tenha a ver com o jogo, a diversão, com práticas de lazer, mas contaminada por temas e referências cada vez mais provenientes de universos em princípio a ela estranhos; processo no qual essa arte, e a própria instituição-arte perdeu, em certa medida, parte de sua dimensão aureática, no sentido de simbolizar uma realidade transcendente, ou a "proximidade que manifesta uma distância", na bela definição de Walter Benjamin ("proximidade" esta que definitivamente parece não ter mais lugar na experiência de fruição da arte contemporânea; e, indo um pouco mais longe, se poderia acrescentar que a própria estética "não mais se revelaria como uma propriedade essencial ou definidora da arte"[5]). Uma arte ainda calcada na experiência e no sensitivo, que se dá em uma época em que as capacidades perceptivas humanas de base não mudaram, mas sim seus modos de intervenção nas condutas artísticas; e em que a arte, enfim, teria perdido parte de seu poder de transformação. E o modo como a experiência estética se dá no bojo desta arte é cada vez mais nebuloso: se o seu repertório aumenta, se vê reduzida na mesma proporção a capacidade de atenção e fruição do espectador diante da mesma, em função do bombardeio de informações e estímulos visuais e subseqüente instâncias de "anestesiamento" a que nosso olhar vem sendo submetido, bem como à profusão de códigos específicos que passaram a ser requeridos para a efetivação desta experiência pela produção contemporânea.

O termo "estado gasoso" designaria assim um estágio determinado da evolução da cultura, um momento em que a arte certamente se volatiliza enquanto objeto, mas que [ainda] permite uma compreensão hedonista da experiência estética – de natureza envolvente mas flutuante e instável.
* * *
Para concluir, essas questões e teorias sugerem que vivemos num mundo em que os fenômenos, como lembra Omar Calabrese[6], "já não falam por si sós e pela evidência. É preciso construí-los como objetos teóricos". E se não se detecta esta "objetividade imediata dos fatos", por outro lado os significados se apresentam como sugestões, permitindo convites ao seu estudo ou análise [mantendo a possibilidade eventual de sua demonstração], bem como sua interpretação e reinterpretação [também passível de ser realizada no registro da desconstrução]. Pouco ou nenhum significado se apresenta explicitamente; reforça-se a impressão que habitamos um mundo em que os signos flutuam em busca de significados e os significados se deixam levar em busca dos signos, contexto que reforçaria a pertinência da aplicação de conceitos como os que estimulam uma leitura da estética na contemporaneidade pelas vias do "cinza" e do "borroso".

notas:

[1] La estetización difusa de las sociedades actuales y la muerte tecnológica del arte, Madrid: Aleph Pensamiento, 1997.

[2] Pensamiento borroso – La nueva ciencia de la lógica borrosa. Barcelona: Crítica, 1995

[3] L'art à l'état gazeux – Essai sur le triomphe de l'esthétique. Paris: Stock, 2003

[4] In Baudrillard Live: selected interviews, ed. Mike Gane. Londres: Routledge, 1993.

[5] DANTO, Arthur C. After the end of art. Princeton, 1997.

[6] A idade neobarroca. Lisboa: Edições 70, 1988.

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