quarta-feira, 19 de agosto de 2009

Seis propostas para o milênio

As prefigurações de Italo Calvino para a arte que virá podem ser chaves de uma nova humanidade

Em suas Seis Propostas para o Próximo Milênio – mais exatamente, nas cinco que conseguiu redigir antes de sua morte súbita -, Italo Calvino faz melhor que profetizar: assume e, assim fazendo, define magistralmente o que seja o componente profético de toda grande arte. Recorde-se que os vocábulos vate e vaticínio têm a mesma raiz; observe-se que, conto, romance ou ensaio, o grande prosador italiano manejava as artes da linguagem com absoluta mestria; e constate-se que, nesses textos, zênites de toda uma vida dedicada à reflexão, Calvino é mais que nunca o autor das Cidades Invisíveis. Vale dizer: o que sua argúcia de ensaísta e erudito nos permite entrever de um futuro hipotético, ele o vai tecendo com os fios eminentemente artesanais de um artífice embebido de um passado tão instrutivo quanto promissor.

Aqui é o artista que nos conduz de espanto em maravilhamento, de Ovídio a Lucrécio, das sagas nórdicas ao folclore centro-europeu e, pelas vias mais inesperadas, de Dante e Cavalcanti a Petrarca e Leopardi, e deles até Montale, Wallace Stevens, Emily Dickinson, Jorge Luis Borges... A impressão é a de que nada se perde de uma Via-Láctea tornada a moldura de uma Via Dolorosa em que se movem, como na roca de um tear inefável e incessante, todos os possíveis do espírito humano. Desse movimento de espiral contínua, ascendente, descendente, recorrente, mas sempre fiel a seu roteiro como um pêndulo a seu ritmo, Calvino interroga não as Parcas, mas o destino exemplar da humanidade tal como até hoje o determinou tudo o que a criatura fez de melhor. Isto posto, aponta a destinação, senão provável com toda certeza perfeitamente possível, desse moto-contínuo, desse périplo cuja coerência e unidade seu admirável gênio analítico torna vívido, perceptível e onipresente.

O espírito enquanto experiência acumulada que seu esboço de painel temporal projeta sobre o devir é, de fato, tão nítido e palpável que, em momento algum, ameaça caber no estreito funil das especulações lucubratórias. Longe disso: sua leitura do exercício da inteligência como fio condutor da condição humana toma o ato de criação artística como a tarefa por excelência da espécie; e, aspirando a bem mais que um mero roteiro das peripécias do intelecto, seu painel da aventura cognitiva tece ante o leitor arguto uma teia de significações de tal modo emocionante, que a única reação possível é o júbilo.

Se tanto se fez, e tão bem, que é possível torná-lo evidente e revê-lo à mais casual ou à mais assistemática das leituras, então é certo e seguro que nada se perde ou pode vir a se perder do ímpeto inquiridor e criativo do ser humano, esse enigma em busca de mais e mais veracidade, consciência e claridade. Isso posto, torna-se um prazer conjeturar como uma tão esplêndida bagagem expedida rumo ao futuro vai atravessar-lhe e clarear-lhe as brumas, cumprir sua viagem e, uma vez lá chegando, dar testemunho do que fomos e havemos de ser.

Dos cinco itens assim inventariados e expedidos à alfândega do amanhã – Leveza, Rapidez, Exatidão, Visibilidade e Multiplicidade; a sexta proposta, Consistência, não chegou a ser desenvolvida -, três parecem-me ter assegurados bom trajeto e bom porto. E digo já por que distingo e separo dos outros dois os quesitos de Leveza, Exatidão e Visibilidade, por que razões deixo às Parcas o destino, para mim incerto, da Rapidez e da Multiplicidade, tais como Calvino as lê e propõe.

É que, como as vejo eu, estas últimas são passíveis de confusão; a primeira, essa “rapidez” que ele entende como economia de meios em favor da comunicabilidade do essencial, pode, cá entre nós, facilmente ser tomada por uma receita de atalhos mais ou menos acrobáticos, dado o espírito apressado de uma era que se anuncia enamorada das vertigens súbitas. Não é o que lhes envia, mas temo que possa vir a ser o que efetivamente queiram receber os “amanhãs que cantam” nos Brasis vindouros... Em que pese a nitidez de sua exposição, a virtude da rapidez necessitaria ainda mais talento e mais cuidado na “chegada” do que no ato de embalá-la e enviá-la a um futuro que temo por demais ávido de mediatismo, de “resultados imediatos”. Bem pode ser que a alguns cá do Terceiro Mundo em seu terceiro milênio não fique assim tão absolutamente claro que Calvino não era calvinista...

O mesmo, ou quase, vale por sua apologia da Multiplicidade. Aqui, a bem dizer, o risco de desvio de carga parece menor, pois que Calvino advoga a idéia de romance como uma espécie de mosaico móvel, em lugar da flaubertiana forma precisa (e fechada) de captar e narrar um determinado aspecto, ou instante, do real. Seu modelo da multiplicidade de planos e perspectivas é sobretudo a Recherche de Proust, e até aí vou eu.

Mas começo a hesitar onde sua reflexão passa de uma justíssima avaliação do projeto (necessariamente) inconcluso de Robert Musil, ao elogio do especimen (inevitavelmente) confuso de Carlo Emilio Gadda. Entendo-o, simpatizo mesmo com essa ambição, esse voto de confiança para com o “seu” ofício, mas não me disponho a endossar suas recomendações, e isso em nome de um certo irredutível espírito meu de desconfiada resistência às amplidões “abertas” em matéria de arte.

Nem todos os sertões são tão grandes que acolham veredas seguras, as mais das vezes o diabo da anarquia dança sozinho nos mais arbitrários redemoinhos à beira da estrada... Ou seja: a menos que se proponham os contos de Borges e as parábolas de Kafka como paradigmas de uma “nova ficção”, e até que lá se chegue sem bookprizes, fico com A Montanha Mágica, com Leviathan, com Mrs. Dalloway, com Nostromo, no temor do que possam vir a ser nossos futuros “homens sem qualidades”...

No mais, Calvino ganha de barbada a aposta com o desconhecido. Partindo do que se fez de mais notável no Ocidente, sua lucidez mapeia os vinte e tantos séculos do ilustre passado-presente, e sua paixão conduz o leitor rumo a um amanhã que contenha toda a fertilidade de um acervo excepcional que, além de incomum, ele demonstra ser mais do que suficiente. Quaisquer que possam ser os novos parâmetros, não será possível honestamente ignorar o que Calvino mostra-nos ter sido e seguir sendo o grande, o incontornável inventário do arquiprovado gênio ocidental.

Sob a rubrica Visibilidade, sua ensaística dá-nos talvez a mais sensível e sucinta explicação demonstrativa do que seja – no caso, em Dante – a “alta fantasia”, essa faculdade eminentemente superior do intelecto, a que antes de tudo o define e sem a qual não há como haver plena representação do mundo nem das coisas que o animam e ultrapassam. É a arte da poesia tornada clara equação e jubiloso entendimento. Haveria mais, bem mais a dizer desse quarto capítulo, mas temo que deixar-me alongar nele seria tentar dar a muitos o que é inevitavelmente o alimento de poucos. É ao poeta, e ao poeta especialmente lúcido, que Calvino se dirige nessa incomparável lição de modelagem, de plasticidade, de forma – a forma e sua música sem par e sem paráfrase. Seu louvor da paranomásia, por exemplo, na Enguia de Montale, por si só mereceria um estudo todo seu. Mas, se passo assim batido por onde a mim mais me importaria deter-me, é que urge, em benefício de todos, aqui e agora, refletir na análise propositiva que seu minucioso intelecto coloca sob as égides complementares da Leveza e da Exatidão.

O que ali vai dito vale especialmente para uma cultura em risco de mutação regressiva, como há meio século vem sendo a nossa, esse nosso Brasil em crise de adolescência tardia, o mesmo que Manuel Bandeira, em 1957, já dizia ser “da América infeliz a porção mais doente”. Àquele país, então apenas esboçado, hoje maduro o bastante para extrair seu enxame de vermes da própria polpa apodrecida, vai endereçada a mensagem central da Leveza segundo Calvino, qual seja: “O mito da modernidade é o exato oposto da eternidade do mito. (...) Se eu tivesse que escolher um símbolo votivo para saudar o novo milênio, seria o salto ágil e imprevisto do poeta-filósofo que se eleva acima do peso do mundo, demonstrando que detém o segredo da leveza, enquanto aquela que muitos julgam ser a vitalidade dos tempos, estrepitante e agressiva, pertence ao reino da morte, como um cemitério de automóveis enferrujados”.

E, para encerrar sem meias medidas, last but not least, aqui vai o mais grave: numa língua cada dia mais invertebrada, preguiçosa, distorcida, contaminada de populismos que, mais ou menos ideologicamente herdados dos ingênuos desvarios “independentistas” de 22, se iriam espertamente institucionalizar em benefício de uma claque de viúvas alegres, tão ciosas quão ambiciosas, nesse quadro acabrunhante e perigoso, a lição, a noção calviniana de Exatidão soa e ressoa com um inadiável sentido de urgência. Por exemplo, na incisividade de passagens como a que segue: “Por que a necessidade de defender valores que a muitos parecerão simplesmente óbvios? A linguagem usada de modo aproximativo, casual, descuidado, me causa intolerável repúdio”. Que não lhe haveria de causar a leitura do cá canonizado Macunaíma, por exemplo? Ou, praticamente ao mesmo nível, a leitura de certos jornais, lamentáveis folhas que acabaram devendo tanto àquela “mariologia” libertária que a USP se encarregou de vender a todo um país que jamais a necessitou, sonhou ou quis... Porque a mentira de cátedra continua a reinar e a irradiar seu terrorismo “novologista”, a leitura das propostas de Calvino talvez ensine o caminho da Arca aos raros que não queiram virar rinoceronte pós-moderno, capivara petista, anta versejante, chimpanzé roqueiro, ou o que mais prometa a fervilhante fauna.
Para esses, vestibulandos em risco de se verem envelhecer como animais no “atual” presépio conceitual beletrista, Calvino pode ser um Noé.

Bruno Tolentino

Nenhum comentário:

Postar um comentário